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sábado, 14 de fevereiro de 2009

A nossa casa é um lugar ao vento



by Donnie Mackay


A nossa casa é um lugar ao vento, mas buscamos
o absoluto, a bárbara verdade duma onda sobre a praia.

Tudo nos pertence porque guardamos na memória
os restos do apego às coisas que tivemos, os gestos
de gratidão que vimos no coração dos dias violentos.

Esta época não é a nossa. Subverte os conceitos
do ânimo, os desígnios legítimos de plenitude.

Mas por isso ainda somos a centelha que arde devagar
na paisagem estreita de árvores estóicas, em momentos
de tempestade, na consciência das opções sublevadas.

Vieira Calado, in Transparências

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Espelhos



"untitled mirror" by zsofi porkolab


Persigo há muito a senda dos espelhos.
A intrigante e abismal distância
onde tudo descansa. Reinos virtuais
de nevoeiros e acordes improváveis.

Os espelhos não dormem. São atentos
ao nascimento e à morte de imortais.
Intacta guardam a memória dos que
na sua transparência se colaram.

Quem dera ao entardecer os penetrasse
o frio diamante do meu peito
e os incontáveis braços das ausências,
comovidos, rendidos, me pegassem.

Licínia Quitério, in "De pé sobre o silêncio"

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Era uma vez




“Era uma vez um rapaz texano que gostava de se meter nos copos. Em certa ocasião, conduzindo bêbado como um cacho, perdeu o controlo do seu automóvel e destruiu os caixotes de lixo da casa paterna. O pai repreendeu-o duramente, a mãe, Barbara, reconheceu que o rapaz tinha sérios problemas com o álcool e, para o ajudar a corrigir o rumo, confiaram em Deus, que é americano, e nuns milhões de dólares que o garoto perdeu estrepitosamente em péssimos negócios petrolíferos. Demonstrou que era incapaz de administrar a sua própria casa e voltou com fúria ao caminho do álcool. Bourbon, cerveja, vinho californiano, tequilla, desciam pela garganta do jovem texano até que um dia o esperado milagre se apresentou diante dele. Chamava-se Billy Graham, o maior show-man religioso da União. «Aleluia! Louvado seja Ele» gritava o jovem texano nos estádios repletos de outros alcoólicos e alienados como ele. E Deus ajudou-o, agora é Presidente dos Estados Unidos da América e um intelectual requintado, como nos recorda o seu discurso pronunciado na universidade da elite da costa Este a poucos meses de assumir o cargo: «Não tinha qualquer ideia do que devia fazer quando cheguei. Conhecia alguns que tinham um plano, mas muito em breve ficou demonstrado que nos esperavam todas as possíveis vitórias e todas as derrotas, que geralmente nos causam grandes surpresas.»Este intelectual é hoje o homem mais poderoso do mundo e os que se curvam à sua passagem querem evidentemente ser como ele.”



Luís Sepúlveda, in Uma história suja


Vamos dizer-lhe adeus. De uma vez por todas.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

As perguntas verdadeiramente importantes



As perguntas verdadeiramente importantes são as que uma criança pode formular - e apenas essas. Só as perguntas mais ingénuas são realmente perguntas importantes. São as interrogações para as quais não há resposta. Uma pergunta para a qual não há resposta é um obstáculo para lá do qual não se pode passar. Ou, por outras palavras: são precisamente as perguntas para as quais não há resposta que marcam os limites das possibilidades humanas e traçam as fronteiras da nossa existência.

Milan Kundera, in "A Insustentável Leveza do Ser"

domingo, 12 de outubro de 2008

Maldade...



Queria saber ser mau, odiar sem limites e sem clemência.
Apetecia-me usar uma faca aguçada e penetrar o peito dos inclementes que engendram crueldades e roubam a paz aos inocentes, aos puros.
Também eu já perdi a inocência.
Deixei a pureza algures numa tempestade em que me perdi um dia, distraído e confuso.

Agora, depois de provar o veneno,
Ergo a taça e brindo ao cinismo
Sou impostor, enceno,
Ofereço-te o abismo.

Mas, mesmo assim, resta-me um fragmento de lucidez.
Apesar de querer magoar, ferir, ainda possuo fome de abraços.
Por isso permaneço de olhos fixos no horizonte, onde o infinito se funde com o essencial.

António Dias da Silva in "Ant Mitos urbanos... Ou assim..."

domingo, 12 de agosto de 2007

Género e Cidadania nas Imagens de História



Podemos pois afirmar que as representações estereotipadas do que é ser mulher e ser homem estão presentes (…). Consideramos que há uma associação implícita das figuras masculinas a papéis activos que se concretizam na esfera pública, através das intervenções político-militar e financeira, ligadas à tomada de decisão (…). A presença das figuras masculinas em todas as esferas traduz-se no exercício de uma diversidade de papéis, a qual pressupõe uma igual diversidade de capacidades e competências. (…) Em contrapartida, a sistemática subrepresentação das mulheres, cuja visibilidade se associa quase sempre a elementos masculinos, sugere a sua dependência bem como a ausência de autonomia como indivíduo. (…)
Nos materiais que analisámos, os rapazes podem identificar-se facilmente com o tipo de protagonismo histórico, colectivo e individual, apresentado pelas imagens, podendo aderir aos modelos de pessoa a que correspondem as personalidades históricas, pois situam-se sempre no seu grupo de pertença sexual. (…) O mesmo não se pode dizer das raparigas, face a uma história androcêntrica que secundariza as mulheres ou as silencia. Em vez do reforço da identidade enquanto colectivo feminino, as raparigas confrontam-se com modelos masculinos que actuam em áreas que não lhes estão associadas, de acordo com determinadas concepções do que é ser mulher. As raparigas são levadas a tomar como referência os modelos masculinos, bem como as suas características e atributos. (…) Esta hipótese parece ser corroborada pelas alterações do modo de vida das mulheres e dos homens. A presença das mulheres em esferas tradicionalmente entendidas como masculinas não tem sido acompanhada pela correspondente presença dos homens nas áreas consideradas mais apropriadas às mulheres.




Maria Teresa Alvarez Nunes, in "Género e Cidadania nas Imagens de História", Estudos de Manuais Escolares e Software Educativo, ed. CIG, Lisboa 2007

quinta-feira, 12 de julho de 2007

3.




na areia da praia encontramos tudo
um brinquedo esquecido
pegadas de gaivotas
um adeus desenhado no coração

um bom-dia imprevisto quando estamos sós
e as espinhas dos peixes limpas pela água

o eco da voz vai com as ondas
que limpam já os passos inseguros
doutro caminho iluminado e breve
frágil no pó dos ossos incendiados

todo o fogo se consome a si próprio.


José Felix, in Antologia Poética Amante das Leituras

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Pausa. Breve. Sempre à beira de água.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

O fio das missangas




Encontro JMC sentado num banco do jardim. Está recatado, em solene solidão, como se só ali, em assento público, encontrasse devida privacidade. Ou como se aquele fosse seu recinto de toda a vida morar. Em volta, o tempo intacto, só com horas certas.
Nunca soube o seu nome por extenso. Creio que ninguém sabe, nem mesmo ele. As pessoas chamam-no assim, soletrando as iniciais : jota eme cê.
Saúdo-o, em inclinação respeitosa. Ele ergue os olhos como se a luz fosse excessiva. Um subtil agitar de dedos: ele quer que eu me sente e o salve da solidão.
- Lembra que sentámos neste mesmo lugar há uns anos atrás?
- Recordo, sim senhor. Parece que foi ontem.
- O ontem é muito longe para mim. Minha lembrança só chega às coisas antigas.
- Ora, o senhor ainda é novo.
- Não sou velho, é verdade. Mas fui ganhando muitas velhices.

E deixámo-nos, calados. Vou lembrando os tempos em que este homem magro e alto desembocava neste mesmo jardim. Acontecia todo o final de tarde. Recordo as suas confidências. Que ele, sendo devidamente casado, se enamorava de paixão ardente por infinitas mulheres. Não há dedos para as contar, todinhas, dizia.
- A vida é um colar. Eu dou um fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas, as missangas.
Sempre que fazia amor com uma delas não regressava directamente a casa. Ia, sim, para casa da sua velha mãe. A ela lhe contava as intimidades de cada novo caso, as diferentes doçuras de cada uma das amantes. De olhos fechados, a velha escutava e fingia até adormecer no cansado sofá de sua sala. No final, tomava nas suas mãos as mãos do filho e ordenava que ele tomasse banho ali mesmo.
- Não vá a sua mulher cheirar a presença de uma outra, dizia.
E JMC se enfiava na banheira enquanto a velha mãe o esfregava com uma esponja cheirosa. Acabado o banho, ela o enxugava, devagarosa como se o tempo passasse por suas mãos e ela o retivesse nas dobras da toalha.
- Continue, meu filho, vá distribuindo esse coração seu que é tão grande. Nunca pare de visitar as mulheres. Nunca pare de as amar
- E o pai, sempre lhe foi fiel?
- Seu pai, mesmo leal, nunca poderia ser fiel
- E porquê?
- Seu pai nunca soube amar ninguém

Agora, tantos anos passados, quase não reconheço o mulherengo homem alto e magro.
- Desculpe perguntar, JMC. Mas o senhor ainda continua visitando mulheres?
Ele não responde. Está absorvido, confrontando unhas com os respectivos dedos. Ter-me-á ouvido? Por recato, não repito a pergunta. Após um tempo, confessa num murmúrio:
- Nunca mais. Nunca mais visitei nenhuma mulher.
Uma tristeza lhe escava a voz. Me confessava, afinal, uma espécie de viuvez. Foi ele quem quebrou a pausa:
- É que sabe? Minha mãe morreu
Meu coração sapateia, desentendido. Pudesse haver silêncio feito da gente estar calada. Mas esse silêncio não há. E nesse vazio permanecemos ambos até que, por entre o cinzentear da tarde, surge Dona Graciosa, esposa de JMC. Está irreconhecível, parece deslocada de um baile de máscaras. Vem de brilhos e flores, mais decote que blusa, mais perna que vestido. Me soergo para lhe dar o lugar no banco. Mas ela se dirige ao marido, suave e doce:
- Me acompanha, JMC?
- E você quem é, minha flor?
- O meu nome você me há-de chamar, mas só depois
- Depois? Depois de quê?
- Ora, só depois

De braços dados, os dois se afastam. A noite me envolve, com seu abraço de cacimbo. E não dou conta de que estou só.




Mia Couto, O fio das missangas

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Para vivenciar nadas




Foto by Robert J. Benson

borboleta é um ser irrequieto.
para vestes usa pólen.
tem um cheiro colorido
e babas de amizade.
descola por ventos
e facilmente aterriza em sonhos.
borboleta tem correspondência directa
com a palavra alma.
para existir usa liberdades.
desconhece o som da tristeza
embora saiba afogá-la.
usa com afinidades
o palco da natureza.
nega maquilhagens isentas
de materiais cósmicos. como digo:
pó-de-lua, lápis solar
castanho-raiz, cinzento-nuvem.
borboleta dispõe de intimidades
com arcos íris
a ponto de cócegas mútuas.
para beijar amigos e vidas ela usa olhos.
borboleta é um ser
de misteriosos nadas.

Ondjaki, in "Há prendisagens com o xão"

domingo, 10 de junho de 2007

Tempo de cinza




Mãos

Digo
"as minhas mãos são água"
qundo imersas
no secular fluir deste riacho
(temerosa timidez
que se diverte,
faz bailar seixos
e os barcos de papel).

Digo
"as minhas mãos são água",
quando à noite,
fascinadas, reflectem as estrelas,
do solene dossel desce o silêncio,
e procuram, também elas, luz no mar.

Digo
"as minhas mãos são água"
pois são geladas
e nada mais encontraram
que agarrar.


Manuel Filipe, in Tempo de cinza, ed. Apenas Livros, Maio 2007

Um encontro na net e na vida real. Fico muito grata por estar incluída no grupo de amigos a quem este livro foi oferecido.

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Escrito para a ausência de nós



Vilhelm Hammershoi, Óleo sobre tela

estas mãos que escrevem
os cristais da tua boca
são apenas sangue quente
a jorrar do meu corpo no
teu.e nenhuma foz é mar
suficiente para acolher
o suicídio das palavras.

de manhã. vou dizer bom
dia ao teu nome. escuta.
ainda antes da primeira
luz... nenhuma poeira na
clarabóia. o céu põe-se
numa taça de areia. vês
ao fundo todos os peixes?

sabes. os búzios falam de
ti. contam uns aos outros
todos os segredos que lêem
no imo das conchas. eu vou
no meio das algas enlaçar-
te os pés. tu tropeças. se
eu te pedir. uma só noite
branca. que dirás de mim?


Alice M. de Campos, in Antologia Poética Amante das Leituras, edium editores

sexta-feira, 1 de junho de 2007

Tarde última e serena




Tarde última e serena,
breve como uma vida,
fim de tudo o que amei;
eu quero ser eterno!

- Atravessando folhas.
o sol, já cobre, vem
ferir-me o coração.
Eu quero ser eterno!

Ó beleza que vi,
não te apagues jamais!
Pra que sejas eterna,
eu quero ser eterno!


Juan Jamón Jimenez, Antologia Poética, ed. Relógio d'água

sexta-feira, 16 de março de 2007

Recordar




Recordar
cumprir esta vontade que se impõe
a que devo obedecer

beber da fonte
um jorro de prazer
um prazer diferente

soltam-se as palavras como notas
que se vão compondo

a cada um
a sua sinfonia

e o belo canto
vou decifrando
na pauta
por enquanto…


Isabel Ruth, in Fotopoesia

quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

...




Daquela mesma varanda, tempos mais tarde, namorei uma rapariga de nome Deolinda, mais velha do que eu três ou quatro anos, que morava num prédio de uma rua paralela, a Travessa do Calado, cujas traseiras davam para as da minha casa. Há que esclarecer que namoro, o que então se chamava namoro, dos de requerimento formal e promessas mais ou menos para durar («A menina quer namorar comigo?», «Pois sim, se são boas as suas intenções»), nunca o chegou a ser. Olhávamo-nos muito, fazíamos sinais, conversávamos de varanda para varanda por cima dos pátios intermédios e das cordas de roupa, mas nada de mais avançado em matéria de compromissos. Tímido, acanhado, como me estava no carácter, fui algumas vezes a casa dela (vivia, creio recordar, com uns avós, mas, ao mesmo tempo, decidido a tudo ou ao que calhasse. Um tudo que daria em nada. Ela era muito bonita, de rostinho redondo, mas, para meu desprazer, tinha os dentes estragados, e, além do mais, devia pensar que eu era demasiado jovem para empenhar comigo os seus sentimentos. Divertia-se um pouco à falta de pretendente idóneo, mas, ou muito enganado ando desde então, tinha pena de que a diferença de idades se notasse tanto. Em certa altura desisti da empresa. Ela tinha o apelido de Bacalhau, e eu, pelos vistos já sensível aos sons e aos sentidos das palavras, não queria que mulher minha fosse pela vida carregando com o nome de Deolinda Bacalhau Saramago.




José Saramago, in As pequenas memórias

quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

O Livro do Meio




04.05.06


Se Portugal fosse uma marca, e se nada fosse feito, estaríamos em risco de desaparecer. São os media que o dizem, com base num estudo de mercado feito agora pela TNS Portugal.
Sinto-me vingado, Fáfá.
Quando propus Portuguex, há mais de vinte anos, cometi um crime hediondo: o de lesa-pátria. Pensei que dava nessa altura uma ajuda à criatividade que faltava. Nesse tempo, o país ainda tinha onde cair, vivo ou morto. Os nativos mais jovens, assanhados pelo desejo de sobreviver, gritavam odes curtas à nova sociedade democrática. Os velhos, ficavam em casa a pedir a Deus que lhes desse um borralho pelo menos decente. Os ricos, no Brasil, nas águas de Ipanema, refrescavam os bolsos e esperavam melhores dias que acabaram por vir, inevitáveis.
Pois hoje, com os ricos a fechar as portas das empresas, os pobres a pedir esmola à porta do primeiro-ministro, e os políticos a perorar como pitonisas ébrias, só me resta ver no canal 2, o da Cultura, a vida erótica dos caracóis e dos louva-a-deus em prime-time, comentada em americano rasca.



Armando Silva Carvalho

Armando Silva Carvalho e Maria Velho da Costa - O Livro do Meio - ed. Caminho