quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

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Daquela mesma varanda, tempos mais tarde, namorei uma rapariga de nome Deolinda, mais velha do que eu três ou quatro anos, que morava num prédio de uma rua paralela, a Travessa do Calado, cujas traseiras davam para as da minha casa. Há que esclarecer que namoro, o que então se chamava namoro, dos de requerimento formal e promessas mais ou menos para durar («A menina quer namorar comigo?», «Pois sim, se são boas as suas intenções»), nunca o chegou a ser. Olhávamo-nos muito, fazíamos sinais, conversávamos de varanda para varanda por cima dos pátios intermédios e das cordas de roupa, mas nada de mais avançado em matéria de compromissos. Tímido, acanhado, como me estava no carácter, fui algumas vezes a casa dela (vivia, creio recordar, com uns avós, mas, ao mesmo tempo, decidido a tudo ou ao que calhasse. Um tudo que daria em nada. Ela era muito bonita, de rostinho redondo, mas, para meu desprazer, tinha os dentes estragados, e, além do mais, devia pensar que eu era demasiado jovem para empenhar comigo os seus sentimentos. Divertia-se um pouco à falta de pretendente idóneo, mas, ou muito enganado ando desde então, tinha pena de que a diferença de idades se notasse tanto. Em certa altura desisti da empresa. Ela tinha o apelido de Bacalhau, e eu, pelos vistos já sensível aos sons e aos sentidos das palavras, não queria que mulher minha fosse pela vida carregando com o nome de Deolinda Bacalhau Saramago.




José Saramago, in As pequenas memórias