domingo, 5 de julho de 2009
quarta-feira, 3 de junho de 2009
A vida
A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, rectângulos, nas linhas
rectas e paralelas que se cruzam com as
linhas da mão;
a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube que
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas húmidas
no gesso da memória;
a vida feita dos seus
corpos obscuros e das suas palavras
próximas.
Nuno Júdice
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sábado, 9 de maio de 2009
Leve
Um vento muito leve passa,
E vai-se, sempre muito leve.
E eu não sei o que penso
Nem procuro sabê-lo.
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quinta-feira, 26 de março de 2009
nada digas
de se ser maior
-; do amor -
de se ser gente que quer ser
melhor
- que o amor -
da idade sem idade de amar
- o amor -
inferior
condição; se for ser-se indolor
- ao amor -.
Fala-me do amor
- superior -
de se ser gente que quer ser
digna
- maior -.
nada digas de amor
- é melhor -.
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quinta-feira, 12 de março de 2009
Procura a maravilha

Onde um beijo sabe
a barcos e bruma.
No brilho redondo
e jovem dos joelhos.
Na noite inclinada
de melancolia.
Procura.
Procura a maravilha.
Eugénio de Andrade
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sábado, 14 de fevereiro de 2009
A nossa casa é um lugar ao vento
by Donnie Mackay
A nossa casa é um lugar ao vento, mas buscamos
o absoluto, a bárbara verdade duma onda sobre a praia.
Tudo nos pertence porque guardamos na memória
os restos do apego às coisas que tivemos, os gestos
de gratidão que vimos no coração dos dias violentos.
Esta época não é a nossa. Subverte os conceitos
do ânimo, os desígnios legítimos de plenitude.
Mas por isso ainda somos a centelha que arde devagar
na paisagem estreita de árvores estóicas, em momentos
de tempestade, na consciência das opções sublevadas.
Vieira Calado, in Transparências
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sexta-feira, 30 de janeiro de 2009
Nascimento último
by Gilles le Bihan
Como se não tivesse substância e de membros apagados.
Desejaria enrolar-me numa folha e dormir na sombra.
E germinar no sono, germinar na árvore.
Tudo acabaria na noite, lentamente, sob uma chuva densa.
Tudo acabaria pelo mais alto desejo num sorriso de nada.
No encontro e no abandono, na última nudez,
respiraria ao ritmo do vento, na relação mais viva.
Seria de novo o gérmen que fui, o rosto indivisível.
E ébrias as palavras diriam o vinho e a argila
e o repouso do ser no ser, os seus obscuros terraços.
Entre rumores e rios a morte perder-se-ia.
António Ramos Rosa
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terça-feira, 20 de janeiro de 2009
Antes o voo
Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada
A recordação é uma traição à Natureza,
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.
Alberto Caeiro
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quinta-feira, 15 de janeiro de 2009
doença
by wkg
eu também padeci dessa doença.
também chamei médicos a desoras.
também tomei os chás de vários pregadores.
andei de feira em feira à cata de bruxos.
dei as minhas mãos em várias leituras .
também me leram cartas .
Os magos me fartaram.
e no entanto nunca fiquei curada.
não curada deles
seus remédios e cartas.
Foi há tempos longos.
eu nem sei se me era
tanto andar andou.
Hoje
nem doença, nem nada.
curei-me.
sabes como?!
curei-me de cansada.
mcorreia
Publicado por vida de vidro às 23:10 1 comentários
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segunda-feira, 5 de janeiro de 2009
Príncipe
by Murat Harmanliki
Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.
São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me
Ana Hatherly, in "Um Calculador de Improbabilidades"
Publicado por vida de vidro às 18:46 1 comentários
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sexta-feira, 2 de janeiro de 2009
o vermelho e o trigo...
Um húmus insuspeito, uma semente, uma promessa...
Talvez um parto...
Talvez um grito,
Ou uma dor por abrir...
Talvez uma tensão na hora de soltar-se...
Há sempre na noite
Um dia imprevisível, uma esperança calada...
Há sempre uma morte que se faz vida...
Há sempre o vermelho e o trigo...
Sabe-se lá quando pode explodir uma flor...
Publicado por vida de vidro às 14:42 0 comentários
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terça-feira, 9 de dezembro de 2008
Espelhos
"untitled mirror" by zsofi porkolab
Persigo há muito a senda dos espelhos.
A intrigante e abismal distância
onde tudo descansa. Reinos virtuais
de nevoeiros e acordes improváveis.
Os espelhos não dormem. São atentos
ao nascimento e à morte de imortais.
Intacta guardam a memória dos que
na sua transparência se colaram.
Quem dera ao entardecer os penetrasse
o frio diamante do meu peito
e os incontáveis braços das ausências,
comovidos, rendidos, me pegassem.
Licínia Quitério, in "De pé sobre o silêncio"
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terça-feira, 2 de dezembro de 2008
Reinvenção do mundo
Quero um novo dia,
Repleto de surpresa e fantasia.
Anseio por novidades e mudanças,
Novas cores,
Novas vidas,
Novas esperanças.
Algumas noites deveriam ser prateadas,
Porque hão-de ser sempre negras e cerradas?
E o mar? Sempre azul cintilante!
Porque não vermelho flamejante?
Os campos deveriam amanhecer azuis algumas vezes,
E todos os anos deveriam mudar o nome dos meses.
Como seria doce pela manhã despertar,
Olhar ao alto e exclamar:"Hoje o céu está da cor da esperança,
E o tempo parou! O relógio não avança."
Mas os dias... são todos tão iguais,
Vinte e quatro horas pontuais.
Estou enfastiado desta monotonia grosseira,
Não poderiam ser vinte cinco à sexta-feira?
Contem-me mentiras novas, histórias surpreendentes.
Reinventem o mundo com imagens diferentes.
Só tenho vinte cinco anos e estou tão cansado...
Reinventem este mundo ou levem-me para outro lado!
Gonçalo Nuno Martins, in Nada em 53 vezes
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quinta-feira, 27 de novembro de 2008
Mas que sei eu
Mas que sei eu das folhas no outono
ao vento vorazmente arremessadas
quando eu passo pelas madrugadas
tal como passaria qualquer dono?
Eu sei que é vão o vento e lento o sono
e acabam coisas mal principiadas
no ínvio precipício das geadas
que pressinto no meu fundo abandono
Nenhum súbito lamenta
a dor de assim passar que me atormenta
e me ergue no ar como outra folha
qualquer. Mas eu sei que sei destas manhãs?
As coisas vêm vão e são tão vãs
como este olhar que ignoro que me olha
Ruy Belo
Publicado por vida de vidro às 18:33 3 comentários
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sexta-feira, 21 de novembro de 2008
Ao Porto
e é de granito
porque se ergue como um só
com um só grito
este é o Porto em que eu nasci
mas não habito
que me conforma em matriz
que eu aceito
ainda que longe e distante
do meu jeito
este é o Porto de que eu gosto
e trago ao peito
e que é invicto
e nobre e popular
sem ser perfeito
mas que é de luta e de revolta
e que se afoita
este é o berço obstinado
e aflito
Porto de preces e rabelos
e de mitos
este é o Porto terra-mãe
em que acredito.
Publicado por vida de vidro às 14:49 0 comentários
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terça-feira, 11 de novembro de 2008
Sino
Grito
Repique de perfídias
Ignomínias
Nem em dias, nem em horas
Nem em quartos
É nos abalos tristes que ele bate
É quando o coração da gente soa
Num parto, numa ida, num desastre
Na perca do amigo é que ele ecoa
Repica em desalinho
Ri e chora
Nem em quartos, nem em horas,
Nem em dias, nem em meses
Repica de alegrias, de saudades
Pelas tardes
Nem em segundos, nem em horas,
Nem em anos, nem em quartos.
É nos entre tempos que ele bate.
Publicado por vida de vidro às 18:18 3 comentários
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sábado, 18 de outubro de 2008
de outono
os teus olhos de outono
a me falarem na distância,
teus gestos.
a nossa estação.
as horas correm entre as árvores
do lugar onde te espero.
Publicado por vida de vidro às 18:55 2 comentários
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domingo, 28 de outubro de 2007
Ainda...
Ainda sabemos cantar
Ainda sabemos cantar,
só a nossa voz é que mudou:
somos agora mais lentos,
mais amargos,
e um novo gesto é igual ao que passou.
Um verso já não é a maravilha,
um corpo já não é a plenitude.
Eugénio de Andrade
Publicado por vida de vidro às 00:36
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sábado, 20 de outubro de 2007
Vida vivida
o que fazemos da nossa vida
nem a nós nos diz respeito
sentimo-la vida vivida
num esboço de destino
retorcido e contrafeito
que nos arrasta sem brilho
em contrapeso no peito
correndo como um menino
retardado na subida
em tropeções sem jeito
Carlos Peres Feio que hoje lança o seu livro "Podiam ser mais"
Publicado por vida de vidro às 08:55
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sábado, 13 de outubro de 2007
Da ausência
Ausência II
Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.
Vinicius de Moraes
Publicado por vida de vidro às 07:08
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