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domingo, 5 de julho de 2009

Não fora o mar




Não fora o mar,

e eu seria feliz na minha rua,

neste primeiro andar da minha casa

a ver, de dia, o sol, de noite a lua,

calada, quieta, sem um golpe de asa.


Não fora o mar,

e seriam contados os meus passos,

tantos para viver, para morrer,

tantos os movimentos dos meus braços,

pequena angústia, pequeno prazer.


Não fora o mar,

e os seus sonhos seriam sem violência

como irisadas bolas de sabão,

efémero cristal, branca aparência,

e o resto — pingos de água em minha mão.


Não fora o mar,

e este cruel desejo de aventura

seria vaga música ao sol pôr

nem sequer brasa viva, queimadura,

pouco mais que o perfume duma flor.


Não fora o mar

e o longo apelo, o canto da sereia,

apenas ilusão, miragem,

breve canção, passo breve na areia,

desejo balbuciante de viagem.


Não fora o mar e,

resignada, em vez de olhar os astros

tudo o que é alto, inacessível, fundo,

cimos, castelos, torres, nuvens, mastros,

iria de olhos baixos pelo mundo.


Não fora o mar

e o meu canto seria flor e mel,

asa de borboleta, rouxinol,

e não rude halali, garra cruel,

Águia Real que desafia o sol.


Não fora o mar

e este potro selvagem, sem arção,

crinas ao vento, com arreio,

meu altivo, indomável coração,


Não fora o mar

e comeria à mão,

não fora o mar

e aceitaria o freio.


Fernanda de Castro

quarta-feira, 3 de junho de 2009

A vida





by hkocak

A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, rectângulos, nas linhas
rectas e paralelas que se cruzam com as
linhas da mão;

a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube que
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas húmidas
no gesso da memória;

a vida feita dos seus
corpos obscuros e das suas palavras
próximas.

Nuno Júdice

sábado, 9 de maio de 2009

Leve



Leve, leve, muito leve,
Um vento muito leve passa,
E vai-se, sempre muito leve.
E eu não sei o que penso
Nem procuro sabê-lo.




Alberto Caeiro

quinta-feira, 26 de março de 2009

nada digas




Fala-me da dignidade
de se ser maior
-; do amor -
de se ser gente que quer ser
melhor
- que o amor -
da idade sem idade de amar
- o amor -
inferior
condição; se for ser-se indolor
- ao amor -.
Fala-me do amor
- superior -
de se ser gente que quer ser
digna
- maior -.

Meu amor
nada digas de amor
- é melhor -.





quinta-feira, 12 de março de 2009

Procura a maravilha

by Anayari Connoly


Procura a maravilha.

Onde um beijo sabe
a barcos e bruma.

No brilho redondo
e jovem dos joelhos.

Na noite inclinada
de melancolia.

Procura.

Procura a maravilha.

Eugénio de Andrade

sábado, 14 de fevereiro de 2009

A nossa casa é um lugar ao vento



by Donnie Mackay


A nossa casa é um lugar ao vento, mas buscamos
o absoluto, a bárbara verdade duma onda sobre a praia.

Tudo nos pertence porque guardamos na memória
os restos do apego às coisas que tivemos, os gestos
de gratidão que vimos no coração dos dias violentos.

Esta época não é a nossa. Subverte os conceitos
do ânimo, os desígnios legítimos de plenitude.

Mas por isso ainda somos a centelha que arde devagar
na paisagem estreita de árvores estóicas, em momentos
de tempestade, na consciência das opções sublevadas.

Vieira Calado, in Transparências

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Nascimento último



by Gilles le Bihan

Como se não tivesse substância e de membros apagados.
Desejaria enrolar-me numa folha e dormir na sombra.
E germinar no sono, germinar na árvore.
Tudo acabaria na noite, lentamente, sob uma chuva densa.
Tudo acabaria pelo mais alto desejo num sorriso de nada.
No encontro e no abandono, na última nudez,
respiraria ao ritmo do vento, na relação mais viva.
Seria de novo o gérmen que fui, o rosto indivisível.
E ébrias as palavras diriam o vinho e a argila
e o repouso do ser no ser, os seus obscuros terraços.
Entre rumores e rios a morte perder-se-ia.

António Ramos Rosa

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Antes o voo




by Artur K.

Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada
A recordação é uma traição à Natureza,
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.

Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!

Alberto Caeiro

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

doença



by wkg

eu também padeci dessa doença.
também chamei médicos a desoras.
também tomei os chás de vários pregadores.
andei de feira em feira à cata de bruxos.
dei as minhas mãos em várias leituras .
também me leram cartas .
Os magos me fartaram.
e no entanto nunca fiquei curada.
não curada deles
seus remédios e cartas.

Foi há tempos longos.
eu nem sei se me era
tanto andar andou.
Hoje
nem doença, nem nada.
curei-me.
sabes como?!
curei-me de cansada.

mcorreia

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Príncipe



by Murat Harmanliki


Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.

São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me

Ana Hatherly, in "Um Calculador de Improbabilidades"

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

o vermelho e o trigo...




No fundo da terra há sempre
Um húmus insuspeito, uma semente, uma promessa...

Talvez um parto...

Talvez um grito,
Ou uma dor por abrir...

Talvez uma tensão na hora de soltar-se...

Há sempre na noite
Um dia imprevisível, uma esperança calada...

Há sempre uma morte que se faz vida...

Há sempre o vermelho e o trigo...

Sabe-se lá quando pode explodir uma flor...



terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Espelhos



"untitled mirror" by zsofi porkolab


Persigo há muito a senda dos espelhos.
A intrigante e abismal distância
onde tudo descansa. Reinos virtuais
de nevoeiros e acordes improváveis.

Os espelhos não dormem. São atentos
ao nascimento e à morte de imortais.
Intacta guardam a memória dos que
na sua transparência se colaram.

Quem dera ao entardecer os penetrasse
o frio diamante do meu peito
e os incontáveis braços das ausências,
comovidos, rendidos, me pegassem.

Licínia Quitério, in "De pé sobre o silêncio"

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Reinvenção do mundo


by Maciej Knapa

Não quero mais um dia.
Quero um novo dia,
Repleto de surpresa e fantasia.
Anseio por novidades e mudanças,
Novas cores,
Novas vidas,
Novas esperanças.
Algumas noites deveriam ser prateadas,
Porque hão-de ser sempre negras e cerradas?
E o mar? Sempre azul cintilante!
Porque não vermelho flamejante?
Os campos deveriam amanhecer azuis algumas vezes,
E todos os anos deveriam mudar o nome dos meses.
Como seria doce pela manhã despertar,
Olhar ao alto e exclamar:"Hoje o céu está da cor da esperança,
E o tempo parou! O relógio não avança."
Mas os dias... são todos tão iguais,
Vinte e quatro horas pontuais.
Estou enfastiado desta monotonia grosseira,
Não poderiam ser vinte cinco à sexta-feira?
Contem-me mentiras novas, histórias surpreendentes.
Reinventem o mundo com imagens diferentes.
Só tenho vinte cinco anos e estou tão cansado...
Reinventem este mundo ou levem-me para outro lado!



Gonçalo Nuno Martins, in Nada em 53 vezes

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Mas que sei eu




Mas que sei eu das folhas no outono
ao vento vorazmente arremessadas
quando eu passo pelas madrugadas
tal como passaria qualquer dono?
Eu sei que é vão o vento e lento o sono
e acabam coisas mal principiadas
no ínvio precipício das geadas
que pressinto no meu fundo abandono
Nenhum súbito lamenta
a dor de assim passar que me atormenta
e me ergue no ar como outra folha
qualquer. Mas eu sei que sei destas manhãs?
As coisas vêm vão e são tão vãs
como este olhar que ignoro que me olha

Ruy Belo

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Ao Porto




porque se basta a si mesmo
e é de granito
porque se ergue como um só
com um só grito
este é o Porto em que eu nasci
mas não habito
que me conforma em matriz
que eu aceito
ainda que longe e distante
do meu jeito
este é o Porto de que eu gosto
e trago ao peito
e que é invicto
e nobre e popular
sem ser perfeito
mas que é de luta e de revolta
e que se afoita
este é o berço obstinado
e aflito
Porto de preces e rabelos
e de mitos
este é o Porto terra-mãe
em que acredito.

Jorge Castro, apresentador do evento de amanhã para que estão todos convidados





terça-feira, 11 de novembro de 2008

Sino


Badaladas de choro
Grito
Repique de perfídias
Ignomínias
Nem em dias, nem em horas
Nem em quartos
É nos abalos tristes que ele bate
É quando o coração da gente soa
Num parto, numa ida, num desastre
Na perca do amigo é que ele ecoa
Repica em desalinho
Ri e chora
Nem em quartos, nem em horas,
Nem em dias, nem em meses
Repica de alegrias, de saudades
Ressoa lento pelas noites
Pelas tardes
Nem em segundos, nem em horas,
Nem em anos, nem em quartos.
É nos entre tempos que ele bate.


sábado, 18 de outubro de 2008

de outono



tenho olhos para ver
os teus olhos de outono
a me falarem na distância,
teus gestos.

é sempre outono,
a nossa estação.
as horas correm entre as árvores
do lugar onde te espero.

domingo, 28 de outubro de 2007

Ainda...




Ainda sabemos cantar

Ainda sabemos cantar,
só a nossa voz é que mudou:
somos agora mais lentos,
mais amargos,
e um novo gesto é igual ao que passou.

Um verso já não é a maravilha,
um corpo já não é a plenitude.

Eugénio de Andrade

sábado, 20 de outubro de 2007

Vida vivida




o que fazemos da nossa vida

nem a nós nos diz respeito

sentimo-la vida vivida

num esboço de destino

retorcido e contrafeito

que nos arrasta sem brilho

em contrapeso no peito

correndo como um menino

retardado na subida

em tropeções sem jeito


Carlos Peres Feio que hoje lança o seu livro "Podiam ser mais"

sábado, 13 de outubro de 2007

Da ausência




Ausência II

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

Vinicius de Moraes