quarta-feira, 4 de julho de 2007

O fio das missangas




Encontro JMC sentado num banco do jardim. Está recatado, em solene solidão, como se só ali, em assento público, encontrasse devida privacidade. Ou como se aquele fosse seu recinto de toda a vida morar. Em volta, o tempo intacto, só com horas certas.
Nunca soube o seu nome por extenso. Creio que ninguém sabe, nem mesmo ele. As pessoas chamam-no assim, soletrando as iniciais : jota eme cê.
Saúdo-o, em inclinação respeitosa. Ele ergue os olhos como se a luz fosse excessiva. Um subtil agitar de dedos: ele quer que eu me sente e o salve da solidão.
- Lembra que sentámos neste mesmo lugar há uns anos atrás?
- Recordo, sim senhor. Parece que foi ontem.
- O ontem é muito longe para mim. Minha lembrança só chega às coisas antigas.
- Ora, o senhor ainda é novo.
- Não sou velho, é verdade. Mas fui ganhando muitas velhices.

E deixámo-nos, calados. Vou lembrando os tempos em que este homem magro e alto desembocava neste mesmo jardim. Acontecia todo o final de tarde. Recordo as suas confidências. Que ele, sendo devidamente casado, se enamorava de paixão ardente por infinitas mulheres. Não há dedos para as contar, todinhas, dizia.
- A vida é um colar. Eu dou um fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas, as missangas.
Sempre que fazia amor com uma delas não regressava directamente a casa. Ia, sim, para casa da sua velha mãe. A ela lhe contava as intimidades de cada novo caso, as diferentes doçuras de cada uma das amantes. De olhos fechados, a velha escutava e fingia até adormecer no cansado sofá de sua sala. No final, tomava nas suas mãos as mãos do filho e ordenava que ele tomasse banho ali mesmo.
- Não vá a sua mulher cheirar a presença de uma outra, dizia.
E JMC se enfiava na banheira enquanto a velha mãe o esfregava com uma esponja cheirosa. Acabado o banho, ela o enxugava, devagarosa como se o tempo passasse por suas mãos e ela o retivesse nas dobras da toalha.
- Continue, meu filho, vá distribuindo esse coração seu que é tão grande. Nunca pare de visitar as mulheres. Nunca pare de as amar
- E o pai, sempre lhe foi fiel?
- Seu pai, mesmo leal, nunca poderia ser fiel
- E porquê?
- Seu pai nunca soube amar ninguém

Agora, tantos anos passados, quase não reconheço o mulherengo homem alto e magro.
- Desculpe perguntar, JMC. Mas o senhor ainda continua visitando mulheres?
Ele não responde. Está absorvido, confrontando unhas com os respectivos dedos. Ter-me-á ouvido? Por recato, não repito a pergunta. Após um tempo, confessa num murmúrio:
- Nunca mais. Nunca mais visitei nenhuma mulher.
Uma tristeza lhe escava a voz. Me confessava, afinal, uma espécie de viuvez. Foi ele quem quebrou a pausa:
- É que sabe? Minha mãe morreu
Meu coração sapateia, desentendido. Pudesse haver silêncio feito da gente estar calada. Mas esse silêncio não há. E nesse vazio permanecemos ambos até que, por entre o cinzentear da tarde, surge Dona Graciosa, esposa de JMC. Está irreconhecível, parece deslocada de um baile de máscaras. Vem de brilhos e flores, mais decote que blusa, mais perna que vestido. Me soergo para lhe dar o lugar no banco. Mas ela se dirige ao marido, suave e doce:
- Me acompanha, JMC?
- E você quem é, minha flor?
- O meu nome você me há-de chamar, mas só depois
- Depois? Depois de quê?
- Ora, só depois

De braços dados, os dois se afastam. A noite me envolve, com seu abraço de cacimbo. E não dou conta de que estou só.




Mia Couto, O fio das missangas