quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

...




Daquela mesma varanda, tempos mais tarde, namorei uma rapariga de nome Deolinda, mais velha do que eu três ou quatro anos, que morava num prédio de uma rua paralela, a Travessa do Calado, cujas traseiras davam para as da minha casa. Há que esclarecer que namoro, o que então se chamava namoro, dos de requerimento formal e promessas mais ou menos para durar («A menina quer namorar comigo?», «Pois sim, se são boas as suas intenções»), nunca o chegou a ser. Olhávamo-nos muito, fazíamos sinais, conversávamos de varanda para varanda por cima dos pátios intermédios e das cordas de roupa, mas nada de mais avançado em matéria de compromissos. Tímido, acanhado, como me estava no carácter, fui algumas vezes a casa dela (vivia, creio recordar, com uns avós, mas, ao mesmo tempo, decidido a tudo ou ao que calhasse. Um tudo que daria em nada. Ela era muito bonita, de rostinho redondo, mas, para meu desprazer, tinha os dentes estragados, e, além do mais, devia pensar que eu era demasiado jovem para empenhar comigo os seus sentimentos. Divertia-se um pouco à falta de pretendente idóneo, mas, ou muito enganado ando desde então, tinha pena de que a diferença de idades se notasse tanto. Em certa altura desisti da empresa. Ela tinha o apelido de Bacalhau, e eu, pelos vistos já sensível aos sons e aos sentidos das palavras, não queria que mulher minha fosse pela vida carregando com o nome de Deolinda Bacalhau Saramago.




José Saramago, in As pequenas memórias

terça-feira, 30 de janeiro de 2007

Os poetas do Parque (II)



Violoncelo

Chorai arcadas
Do violoncelo!
Convulsionadas,
Pontes aladas
De pesadelo...

De que esvoaçam,
Brancos, os arcos...
Por baixo passam,
Se despedaçam,
No rio, os barcos.

Fundas, soluçam
Caudais de choro...
Que ruínas (ouçam)!
Se se debruçam,
Que sorvedouro!...

Trémulos astros...
Soidões lacustres...
– Lemos e mastros...
E os alabastros
Dos balaústres!

Urnas quebradas!
Blocos de gelo...
– Chorai arcadas,
Despedaçadas,
Do violoncelo

Camilo Pessanha

segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

Blood Diamond




África sem paliativos. Com paisagens manchadas de sangue, sem animais mais ferozes que o homem. Com imagens que nos ferem como facas. Porque sabemos não serem diferentes da realidade. Algumas concessões ao mito da redenção do anti-herói, como "defeito" habitual.
TIA - this is Africa. Para nossa vergonha.

domingo, 28 de janeiro de 2007

inverno





o inverno desliza
no corpo que espera.

quanto frio ainda haverá,
antes que ele chegue
e de novo as rosas desabrochem
e com elas a cor pinte meu rosto?

desde que se foi o meu amado
não há almíscar,
o perfume desertou a vida,
o vinho não sabe a prazer.
já não me acolhe, a noite,
é escuridão sem voz .

o vento não se oculta no deserto,
nem fala aos meus quadris
nenhuma dança.

desde que se foi o meu amado
o inverno não se cansa de ser eu.


silvia chueire

sábado, 27 de janeiro de 2007

Escreve!





Senta-te diante da folha de papel e escreve. Escrever o quê? Não perguntes. Os crentes têm as suas horas de orar, mesmo não estando inclinados para isso. Concentram-se, fazem um esforço de contenção beata e lá conseguem. Esperam a graça e às vezes ela vem. Escrever é orar sem um deus para a oração. Porque o poder da divindade não passa apenas pela crença e é aí apenas uma modalidade de a fazer existir. Ela existe para os que não crêem, como expressão do sagrado sem divindade que a preencha. Como é que outros escrevem em agnosticismo da sensibilidade? Decerto eles o fazem sendo crentes como os crentes pelo acto extremo de o manifestarem. Eles captarão assim o poder da transfiguração e do incognoscível na execução fria do acto em que isso deveria ser. Escreve e não perguntes. Escreve para te doeres disso, de não saberes. E já houve resposta bastante.




Vergílio Ferreira, in 'Pensar'

sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

Douro triste




fui ao Douro em busca do nada
olhar suas águas brilho de inox
ouvir margens enganadas pelo tempo
num choro que marca a manhã
com incêndios pôr de sol

esperanças em nova era
morreram na barca que habito
tornar a voltar ao Douro agora
num naufrágio de águas calmas
nevoeiro cerrado
humidade no ar
em mistura com lágrimas


Carlos Peres Feio

quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

Os poetas do Parque (I)




...De repente a minha vida
Sumiu-se pela valeta...
Melhor deixá-la esquecida
No fundo de uma gaveta...

(Se eu apagasse as lanternas
Para que ninguém mais me visse,
E a minha vida fugisse
Com o rabinho entre as pernas?...)


Mário de Sá Carneiro

quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

Leonard Cohen




ficheiro retirado


CD: The Essential Leonard Cohen
Som: Take this longing
Site: Leonard Cohen files

terça-feira, 23 de janeiro de 2007

Desolação




A casa está vazia.
Ao cimo da escada apareces às vezes com as
Cores o Inverno,
E és vulto,
O sétimo selo sobre a minha palidez.


José Agostinho Baptista

segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

Scoop




Woody Allen de volta aos ecrãs, também como actor, de volta à comédia, de volta a Londres. Scarlett Johansson, a musa actual, sempre a não perder. Uma comédia "silly", talvez. Mas com a marca inconfundível de Woody.

domingo, 21 de janeiro de 2007

A mão no arado

ficheiro retirado


Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará
Oh! Como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs de verão
ao longo do mar transbordante de nós
No demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua

É triste ir na vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no Outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solitário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã

Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de Novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente


Ruy Belo, in O Problema da Habitação

Voz: Luis Miguel Cintra

sábado, 20 de janeiro de 2007

Vogais de água




há lugares onde chegam vogais de água
lugares novos espantados que assomam à memória
por redes vertiginosas

as suas entoações concentram-se em palavras fabulosas
palavras luminosas sur-
preendidas pelos castiçais dos ii

um projecto de água

digo:

transportar o sonho de um lado para outro
abrir com toda a força um buraco nos espelhos

Maria Azenha

sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

eu faço o ninho



Foto by Akif [Hakan] Celebi, Precious and fragile things need special handling


quando as palavras têm o peso dum passarinho
eu faço o ninho
num canto do teu sorriso
alongo o olhar pelos pêlos dos teus braços
que são só braços
a luzirem ao luar
deixo-me entreter devagar
na paródia de uma história
num desfiar da memória

é leve e brilha a pupila
cintila levita sem siso que me prenda
é só renda a rendilhar
brincamos no faz de conta
tu és quem conta eu sou a tonta
até o dia clarear
depois
jogamos palavras com emoções mais pesadas
espreitando nelas a margem do voo a saber voar

assim vamos
construindo coisas simples sem destino
imos novos novos rimos
sabemos nada assim vimos
sozinhos somos um par.


MJM

quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Verdade?




Uma das frequentes conclusões falsas é esta: como alguém é verdadeiro e sincero para connosco, pois diz a verdade. Assim, a criança acredita nos juízos dos pais, o cristão nas afirmações do fundador da Igreja. Do mesmo modo, não se quer admitir que tudo aquilo, que os homens, com sacrifício da felicidade e da vida, defenderam em séculos anteriores, nada mais era do que erros: talvez se diga que tenham sido graus da verdade. Mas, no fundo, acha-se que se alguém acreditou honestamente em alguma coisa e combateu e morreu pela sua crença, seria, contudo, por de mais injusto se, efectivamente, apenas um erro o tivesse inspirado. Um caso assim parece contradizer a eterna justiça; por isso, o coração das pessoas sensíveis decreta constantemente contra a sua cabeça a seguinte norma: entre acções morais e juízos intelectuais tem de haver um nexo necessário. Infelizmente, não é assim, pois não há justiça eterna.




Friedrich Nietzsche, in 'Humano, Demasiado Humano'

quarta-feira, 17 de janeiro de 2007

Corpo de água





E é na orla dos dias
desse difícil caminho
que te chamo amor
amante
lançando a voz sobre o fio
dessa lâmina de mágoa.
Vê que no leito do rio
que o teu olhar alcança
o meu corpo é a água.

Maio 2006

terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Preto e branco intenso



Foto by Rainer Pawellek, Join the Show


Em preto e branco

Abri minha janela
O mundo estava cinza
Cinza
E deveras silencioso
Olhos abertos
Lábios cerrados
Poemas em fisionomias
Desde já
Não mais haveriam segredos
Ocultos por minhas palavras
Não mais haveriam erros
Esquecidos pelo rubor de nossas faces


R.S.Vasconcelos

segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

[O navio de espelhos]

ficheiro retirado

O navio de espelhos
não navega.cavalga

Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos

Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele

Os armadores não amam
a sua rota clara

(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)

Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga

O seu porão traz nada
nada leva à partida

Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta

E no mastro espelhado
uma espécie de porta

Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto

A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto

Quando um se revolta
há dez mil insurrectos

(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)

E quando um deles ala
o corpo sobre os mastros
e escruta o mar do fundo

Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo
até ao fim do mundo


Mário Cesariny, A Cidade Queimada, o navio de espelhos XIII

Voz: Mário Cesariny
Música: Rodrigo Leão e Gabriel Gomes

domingo, 14 de janeiro de 2007

:é doce morrer no mar?




porque sou do deserto e ele me chama
(bem sei: prefiro à luz a vaga bruma)
escondo-me entre a onda e a espuma
e de quem não sabe ainda se me ama.
hesito entre partir na tarde ausente
do azul que tanto amo e se desfaz
(negrume de organdi que a noite traz)
:persisto nesta busca improcedente?
pois tu - tu não virás - bem sei agora
(fantasmas te povoam peito e mãos)
e em sendo vã a espera o que esperar?
escuso-me ao crepúsculo e à aurora.

depois por ser deserto abraço o mar
que sei me há-de acolher em seus desvãos.


Márcia Maia, in Em queda livre

sábado, 13 de janeiro de 2007

Rodrigo y Gabriela




ficheiro retirado

Disco: Rodrigo y Gabriela
Som: Diablo Rojo
Site oficial: Rodgab.com

sexta-feira, 12 de janeiro de 2007

Mentimos para proteger o nosso prazer




A mentira é essencial à humanidade. Nela desempenha porventura um papel tão importante como a procura do prazer, e de resto é comandada por essa mesma procura. Mentimos para proteger o nosso prazer, ou a nossa honra se a divulgação do prazer for contrária à honra. Mentimos ao longo de toda a nossa vida, até, e sobretudo, e talvez apenas, àqueles que nos amam. Só estes, com efeito, nos fazem temer pelo nosso prazer e desejar a sua estima.




Marcel Proust, in 'A Fugitiva'

Ela tem um corpo...



Foto by Angelicatas - The secret garden, Proud


SOBRE O VESTIDO ELA TEM UM CORPO

O corpo da mulher é redondo como meu crânio
Glorioso
Se se está possuído de espírito
Os costureiros fazem um trabalho idiota
Tanto quanto a frenologia
Meus olhos são os quilos que pesam a sensibilidade das mulheres
Tudo o que foge, destaca e avança na profundidade.
As estrelas esvaziam o céu
As cores despem-se
Sobre o vestido ela tem um corpo
Sob os braços as urzes mãos lúnulas e pistilos quando
as águas se vertem sobre as costas com as
omoplatas
glaucas
A barriga um disco que se move
A concha dupla dos seios passa sob a ponte dos arco-íris
Ventre
Disco
Sol
Os gritos perpendiculares das cores caem sobre as coxas.


Blaise Cendrars

quinta-feira, 11 de janeiro de 2007

Olhando a cidade...




As árvores, não.
Solitárias, as árvores,
exauram terra e sol silenciosamente.
Não pensam, não suspiram, não se queixam.
Estendem os braços como se implorassem;
com o vento soltam ais como se suspirassem;
e gemem, mas a queixa não é sua.


António Gedeão, Poema das árvores

quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

O Livro do Meio




04.05.06


Se Portugal fosse uma marca, e se nada fosse feito, estaríamos em risco de desaparecer. São os media que o dizem, com base num estudo de mercado feito agora pela TNS Portugal.
Sinto-me vingado, Fáfá.
Quando propus Portuguex, há mais de vinte anos, cometi um crime hediondo: o de lesa-pátria. Pensei que dava nessa altura uma ajuda à criatividade que faltava. Nesse tempo, o país ainda tinha onde cair, vivo ou morto. Os nativos mais jovens, assanhados pelo desejo de sobreviver, gritavam odes curtas à nova sociedade democrática. Os velhos, ficavam em casa a pedir a Deus que lhes desse um borralho pelo menos decente. Os ricos, no Brasil, nas águas de Ipanema, refrescavam os bolsos e esperavam melhores dias que acabaram por vir, inevitáveis.
Pois hoje, com os ricos a fechar as portas das empresas, os pobres a pedir esmola à porta do primeiro-ministro, e os políticos a perorar como pitonisas ébrias, só me resta ver no canal 2, o da Cultura, a vida erótica dos caracóis e dos louva-a-deus em prime-time, comentada em americano rasca.



Armando Silva Carvalho

Armando Silva Carvalho e Maria Velho da Costa - O Livro do Meio - ed. Caminho

terça-feira, 9 de janeiro de 2007

As pedras




Respiro a terra nas palavras,
no dorso das palavras
respiro
a pedra fresca de cal;


respiro um veio de água
que se perde
entre as espáduas
ou as nádegas;
respiro um sol recente
e raso
nas palavras
com lentidão de animal.


Eugénio de Andrade, Nas palavras

segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

Das utopias



Foto by Maciej Knapa


Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos se não fora
A mágica presença das estrelas!


Mário Quintana

domingo, 7 de janeiro de 2007

Ojos de Brujo




ficheiro retirado



Último disco: Techari
Som: Respira
Site oficial: O|D|B

sábado, 6 de janeiro de 2007

Espreito o nevoeiro...



Espero sempre por ti o dia inteiro,
Quando na praia sobe, de cinza e oiro,
O nevoeiro
E há em todas as coisas o agoiro
De uma fantástica vinda.



Sophia de Mello Breyner, Espero

sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

Babel




A incapacidade de comunicação e entendimento dos outros coloca seres humanos em situações de confronto e risco máximo. Fio condutor de uma peregrinação (interior e exterior) pela enorme torre de Babel que é, de facto, este mundo.

No início do caminho




Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta,
Em que as coisas têm toda a realidade que podem ter,
Pergunto a mim próprio devagar
Porque sequer atribuo eu
Beleza às coisas.


Alberto Caeiro