quinta-feira, 12 de julho de 2007

3.




na areia da praia encontramos tudo
um brinquedo esquecido
pegadas de gaivotas
um adeus desenhado no coração

um bom-dia imprevisto quando estamos sós
e as espinhas dos peixes limpas pela água

o eco da voz vai com as ondas
que limpam já os passos inseguros
doutro caminho iluminado e breve
frágil no pó dos ossos incendiados

todo o fogo se consome a si próprio.


José Felix, in Antologia Poética Amante das Leituras

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Pausa. Breve. Sempre à beira de água.

O bem e o mal




O homem deseja um mundo em que o bem e o mal sejam nitidamente discerníveis, porque nele há o desejo, inato e indomável, de julgar antes de compreender. Sobre esse desejo são fundadas as religiões e as ideologias. Estas não se podem conciliar com o romance a não ser que traduzam a linguagem de relatividade e de ambiguidade dele para o seu discurso apodítico e dogmático. Exigem que alguém tenha razão: ou Anna Karenina é vítima de um déspota limitado, ou Karenine é vítima de uma mulher imoral; ou então K., inocente, é esmagado por um tribunal injusto, ou então, por trás do tribunal, está escondida a justiça divina e K. é culpado.
Neste «ou então-ou então» está contida a incapacidade de suportar a relatividade essencial das coisas humanas, a incapacidade de olhar de frente a ausência do Juiz supremo. Por causa desta incapacidade, a sabedoria do romance (a sabedoria da incerteza) é difícil de aceitar e de compreender.



Milan Kundera, in "A Arte do Romance"

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Janis Joplin Tribute

Melissa Etheridge e Joss Stone recordando uma lenda da música.

terça-feira, 10 de julho de 2007

Les gens de Paris




Pessoas. Em Paris. Com a cidade luz, a preto e branco.

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Um céu e nada mais




Um céu e nada mais - que só um temos,
como neste sistema: só um sol.
Mas luzes a fingir, dependuradas
em abóbada azul - como de tecto.
E o seu número tal, que deslumbrados
eram os teus olhos, se tas mostrasse,
amor, tão de ribalta azul, como de
circo, e dança então comigo no
trapézio, poema em alto risco,
e um levíssimo toque de mistério.
Pega nas lantejoulas a fingir
de sóis mal descobertos e lança
agora a âncora maior sobre o meu
coração. Que não te assuste o som
desse trovão que ainda agora ouviste,
era de deus a sua voz, ou mito,
era de um anjo por demais caído.
Mas, de verdade: natural fenómeno
a invadir-te as veias e o cérebro,
tão frágil como álcool, tão de
potente e liso como álcool
implodindo do céu e das estrelas,
imensas a fingir e penduradas
sobre abóbada azul. Se te mostrasse,
amor, a cor do pesadelo que por
aqui passou agora mesmo, um céu
e nada mais - que nada temos,
que não seja esta angústia de
mortais (e a maldição da rima,
já agora, a invadir poema em alto risco),
e a dança no trapézio proibido,
sem rede, deus, ou lei,
nem música de dança, nem sequer
inocência de criança, amor,
nem inocência. Um céu e nada mais.


Ana Luísa Amaral

domingo, 8 de julho de 2007

Ingrid Bergman

sábado, 7 de julho de 2007

O que damos...




Aquilo que de verdadeiramente significativo podemos dar a alguém é o que nunca demos a outra pessoa, porque nasceu e se inventou por obra do afecto. O gesto mais amoroso deixa de o ser se, mesmo bem sentido, representa a repetição de incontáveis gestos anteriores numa situação semelhante. O amor é a invenção de tudo, uma originalidade inesgotável. Fundamentalmente, uma inocência.



Fernando Namora, in 'Jornal sem Data'

sexta-feira, 6 de julho de 2007

Sabias?



Foto by Akif[Akan]Celebi


vivemos dentro da luz
férvida fonte

ao longe
chamamos perto
e ao perto longe

vivemos
o verso e a medida
a métrica curta
a tónica do gesto
a ave viva
ausente

sobrevoamos
vitrais
nas lânguidas
catedrais do deus
silêncio

sabemos
as lajes da morte
os ecos
dos passos idos
as frágeis
asas do tempo

mas vamos
ainda assim
de mãos nos olhos
demoradamente
jovens
até Dezembro

provavelmente
adiados ossos
um dia velhos
mas eternos
no tempo
que nos pára
não sabemos…

ao certo
só temos a demora

nada nos prende
tudo nos solta
um sopro nos guia
no belo bosque
até ao corpo
que buscamos
entre lírios
sempre

sem olhos
vemos mais dentro
por entre
as intensas
mós
o pálido trigo
a melancolia

e o moinho mói
lentamente
os nossos dias

o amor
mói-nos a nós

sabias?

aziluth

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Lisboa




Digo:
«Lisboa»
(…)
Vejo-a melhor porque a digo
Tudo se mostra melhor porque a digo
Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carência
Porque digo
(…)
Digo o nome da cidade
- Digo para ver

Sophia de Mello Breyner Andresen, excerto de “Lisboa”

quarta-feira, 4 de julho de 2007

O fio das missangas




Encontro JMC sentado num banco do jardim. Está recatado, em solene solidão, como se só ali, em assento público, encontrasse devida privacidade. Ou como se aquele fosse seu recinto de toda a vida morar. Em volta, o tempo intacto, só com horas certas.
Nunca soube o seu nome por extenso. Creio que ninguém sabe, nem mesmo ele. As pessoas chamam-no assim, soletrando as iniciais : jota eme cê.
Saúdo-o, em inclinação respeitosa. Ele ergue os olhos como se a luz fosse excessiva. Um subtil agitar de dedos: ele quer que eu me sente e o salve da solidão.
- Lembra que sentámos neste mesmo lugar há uns anos atrás?
- Recordo, sim senhor. Parece que foi ontem.
- O ontem é muito longe para mim. Minha lembrança só chega às coisas antigas.
- Ora, o senhor ainda é novo.
- Não sou velho, é verdade. Mas fui ganhando muitas velhices.

E deixámo-nos, calados. Vou lembrando os tempos em que este homem magro e alto desembocava neste mesmo jardim. Acontecia todo o final de tarde. Recordo as suas confidências. Que ele, sendo devidamente casado, se enamorava de paixão ardente por infinitas mulheres. Não há dedos para as contar, todinhas, dizia.
- A vida é um colar. Eu dou um fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas, as missangas.
Sempre que fazia amor com uma delas não regressava directamente a casa. Ia, sim, para casa da sua velha mãe. A ela lhe contava as intimidades de cada novo caso, as diferentes doçuras de cada uma das amantes. De olhos fechados, a velha escutava e fingia até adormecer no cansado sofá de sua sala. No final, tomava nas suas mãos as mãos do filho e ordenava que ele tomasse banho ali mesmo.
- Não vá a sua mulher cheirar a presença de uma outra, dizia.
E JMC se enfiava na banheira enquanto a velha mãe o esfregava com uma esponja cheirosa. Acabado o banho, ela o enxugava, devagarosa como se o tempo passasse por suas mãos e ela o retivesse nas dobras da toalha.
- Continue, meu filho, vá distribuindo esse coração seu que é tão grande. Nunca pare de visitar as mulheres. Nunca pare de as amar
- E o pai, sempre lhe foi fiel?
- Seu pai, mesmo leal, nunca poderia ser fiel
- E porquê?
- Seu pai nunca soube amar ninguém

Agora, tantos anos passados, quase não reconheço o mulherengo homem alto e magro.
- Desculpe perguntar, JMC. Mas o senhor ainda continua visitando mulheres?
Ele não responde. Está absorvido, confrontando unhas com os respectivos dedos. Ter-me-á ouvido? Por recato, não repito a pergunta. Após um tempo, confessa num murmúrio:
- Nunca mais. Nunca mais visitei nenhuma mulher.
Uma tristeza lhe escava a voz. Me confessava, afinal, uma espécie de viuvez. Foi ele quem quebrou a pausa:
- É que sabe? Minha mãe morreu
Meu coração sapateia, desentendido. Pudesse haver silêncio feito da gente estar calada. Mas esse silêncio não há. E nesse vazio permanecemos ambos até que, por entre o cinzentear da tarde, surge Dona Graciosa, esposa de JMC. Está irreconhecível, parece deslocada de um baile de máscaras. Vem de brilhos e flores, mais decote que blusa, mais perna que vestido. Me soergo para lhe dar o lugar no banco. Mas ela se dirige ao marido, suave e doce:
- Me acompanha, JMC?
- E você quem é, minha flor?
- O meu nome você me há-de chamar, mas só depois
- Depois? Depois de quê?
- Ora, só depois

De braços dados, os dois se afastam. A noite me envolve, com seu abraço de cacimbo. E não dou conta de que estou só.




Mia Couto, O fio das missangas

terça-feira, 3 de julho de 2007

Mummenschanz

Palavras não se aplicam.

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Dos sofrimentos




Todos os sofrimentos que nos cercam, é-nos necessário sofrê-los igualmente. Todos nós, não temos um corpo, mas um crescimento, e esse conduz-nos através de todas as dores, seja sob que forma for. Do mesmo modo que a criança, através de todos os estádios da vida, se desenvolve até à velhice e até à morte (e cada estádio parece no fundo inacessível ao precedente, quer seja desejado ou receado), do mesmo modo nos desenvolvemos (não menos solidários da humanidade do que de nós próprios) através de todos os sofrimentos deste mundo. Para a justiça não há, nesta ordem de coisas, lugar algum, não mais do que para o receio dos sofrimentos ou para a interpretação do sofrimento como um mérito.



Franz Kafka, in "Meditações"

domingo, 1 de julho de 2007

Navegarei




Mostrem-me as pedras
Quero ser como elas

Soltem-me os ventos
Serei como as urzes

Libertem-me o mar
E navegarei

E tal como a pedra no mar ancorada
só minhas serão todas as estrelas
e os meus cabelos que os ventos desgrenham
terão mais sentido no oceano imenso

estas mãos
estes olhos
por todo este mar a correr-me nas veias
reaprenderei o gosto agridoce de saber amar

e talvez só me baste
este encantamento de voz de sereias
crescendo dolente nas minhas falésias
para deslaçar todas as amarras
e navegarei

Serei pedra e urze
Mas navegarei.


Jorge Castro, in Contra a Corrente